quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Indefinido


(Escrevi já há algum tempo, mas senti vontade de compartilhar.)

Era um trabalhador incansável, soldado exemplar, que fazia tudo pelos seus. Vivia em tanta sintonia com o mundo que habitava, com seus semelhantes... Indivíduo? Nunca! Tudo pelo coletivo! Era um pilar insignificantemente importante para a sobrevivência de seu grupo. Na verdade, o eram todos: base fundamental de coisa alguma. Uma verdadeira hidra com bilhões de cabeças. Corte uma e centenas nascerão em seu lugar – senão milhares!

Essa notável nulidade já se manifestou no dia de seu nascimento – eclodiu em algum lugar, notado por aqueles que precisavam passar. Seu papel foi definido ali, no exato momento em que foi pisoteado por seus irmãos: um ser iluminado de tremenda irrelevância.

Não recebeu um seu nome, já que seu nome era o de todos. Era definido por artigo indefinido. Era um ou uma, isso bastava. Quando mais velho, iniciou suas viagens pelos mundos. Vagou por diversos lugares, sempre incumbido da mesma missão: a sobrevivência do coletivo. Até hoje não se sabe muito bem se o coletivo, essa soma de zeros, resulta em um; mas, ao menos, crê-se ter alcançado orgulhosos dois terços de angustiante incômodo, pois, no terço restante, é preciso repor as energias.  

Durante essas viagens, traçou diversas rotas para que pudesse, finalmente, decidir qual seria a definitiva. Precisava se estabelecer – ninguém que é ninguém consegue continuar não sendo se não aderir a uma rotina. Já havia percorrido um longo percurso em seu caminho para a niilização do detestável eu. Já era um quase completo e exemplar ninguém, o único obstáculo que faltava ser superado era a inquietante comichão inquisitiva que o acompanhava desde seu espetacularmente anódino advento ao mundo. Comichão que ao invés de cessar, só aumentava. E para passar de comichão para lesão irreversível foi um passo!

Estava atravessando uma vale de vistosos azulejos, carregando um grãozinho de vida para garantir a vil sobrevivência e abjeto desenvolvimento do majestoso império de seres que não fazem. O grãozinho, por si só, também não era de grande valia. Fazia parte de uma enorme fila de grãozinhos que seguia, em ritmo ansiosamente frenético, rumo ao objetivo.

Tudo corria perfeitamente bem, não fosse pela perturbadora necessidade de nosso um ou uma se tornar o ou a. Nunca compartilhou esse pensamento com ninguém, pois sabia que sequer deveria pensar. “Siga as instruções, vá e volte sem questionar, é tudo que você precisa saber para continuar adequadamente não sendo.” – foi acometido de imenso desespero quando percebeu que diversas e perturbadoras duvidazinhas saltitavam em sua mente, no exato momento em que lhe disseram para não questionar. Tudo que desejava era erguer as mãos e perguntar – mas conteve-se.

A lembrança da importância da coletividade o despertou de seu devaneio para a gelidamente real travessia do vale de azulejos, localizado no inóspito, pelo menos se observado sob uma perspectiva microscópica, país Banheiro do Andar de Cima. A jornada era longa e cansativa – não podiam mencionar o cansaço, pois isso poderia levar ao questionamento da tarefa – e estavam em sua segunda metade, retornando pelo mesmo caminho que fizeram para chegar aos grãos.

Cruzavam diversos países até que pudessem alcançar o paraíso multicolorido e multiclimático dos grãos, o país de Cozinha. Seu império de não significância ficava em um cantinho escuro e aconchegante do país de Jardim. Partindo dali, havia várias rotas para alcançar Cozinha. Algumas bem mais simples e curtas do que a que estavam percorrendo, mas para garantir a eficácia no fornecimento de grãos, várias rotas deveriam ser traçadas, pois muitas delas eram diariamente comprometidas.

Um dos pontos mais críticos de sua rota era exatamente Banheiro, pois em razão da sua alta umidade, gotas d’água brotavam, culminando em gigantescos e impiedosos montes transparentes que surgiam como mortíferos obstáculos. Essas gotas, ao atingir seu ápice, desprendiam-se da superfície dos azulejos e despencavam vertiginosamente arrastando tudo que encontravam a sua frente.

Por vezes, observava, aterrorizado, seus companheiros a serem sugados pelo vil magnetismo característico dessas gotas. Foi em um desses momentos que, absorvido em profundo assombro, foi apanhado por uma das gotas prestes a despencar rumo à desintegração. Um pequeno fio d’água o agarrou pelas patinhas e, após muita luta, decidiu que o melhor a fazer era abandonar o grão e tentar salvar-se como fosse possível.

Agora, absorvido, via o mundo maior. Via seus companheiros oscilarem entre pequeno, médio e gigantesco. Achou engraçado, pois, por vezes, não era o todo que crescia. Um pequeno corpo com uma cabeça enorme. Alguns pareciam ter engolido uma enorme bolha de ar, que cruzava seus pequenos corpos, começo, meio e fim, indo integrar-se com as estranhas hachuras dos azulejos. 

Essa nova visão do mundo fez seu coração acelerar – tudo podia ser tão mais... Sentiu um solavanco quando a gota finalmente se desprendeu. A queda foi rápida e, ao atingir o chão, a gota espatifou-se formando uma pequena onda, que o carregou por centímetros, indo depositar, gentilmente, seu quase inerte corpo ao chão. O movimento o fez lembrar-se das folhas, a vagar pela imensidão dos lagos que se formavam em Jardim, após a chuva, aportando em um montículo de terra, como se estivessem a unir-se ao solo.

Enquanto estava ali, tentando livrar-se de uma estranha sucção que prendia seu corpo ao piso, ouviu um enorme estrondo. O chão passou a tremer e enormes lufadas de vento pareciam intensificar o efeito da sucção, empurrando-o cada vez mais para o fundo. Fundo em que já estava, mas, que as estranhas leis que ali agiam pareciam não conseguir notar. Envolvido na luta contra a força inexorável, mal pôde notar uma enorme sombra a encobri-lo. Apenas sentiu o ar tornar-se cada vez mais pesado como o peso de mil mundos a chocar-se contra seu ínfimo corpo.

Segundos após o choque, sentiu-se leve, como a flutuar. Percebeu que ascendia rumo a uma enorme luz que brilhava na parte central do país de Banheiro. Lá do alto, avistou uma enorme criatura, bem diferente do que ele era. Lembrou-se de que já encontrara criaturas similares durante suas jornadas, porém, nunca pode contemplá-las em sua plenitude. A criatura se enrolava em um manto felpudo e agitava seus braços, enquanto seu corpo chacoalhava-se freneticamente. Ao lado do que pareciam ser as patas da criatura, notou um pequeno corpo, contorcido. Inicialmente, pensou ser um de seus companheiros, mas, um forte aperto em seu coração o fez notar que aquele era, na verdade, o seu corpo.

Atinou, então, que tudo parecia encolher conforme prosseguia com sua escalada. Encolher e encolher... cada vez mais. E, à medida que tudo encolhia, sentia que tudo cada vez menos importava. O tamanho e a importância, proporcionalmente, perdiam-se diante das novas perspectivas que adquiria durante seu voo. E sorriu, pela primeira vez experimentando o, até então, estranho sentimento que lhe parecia ser a felicidade. Sentia-se enorme e único. Sentia-se dono de seu próprio mundo. Pela primeira vez, em toda sua anódina existência, percebeu ter sido presenteado com aquilo que tanto procurava: a liberdade.

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